Motivação

Motivação

Ainda não tinha aqui falado da reestruturação que está a decorrer, há já cerca de dois meses, no meu local de trabalho. Para quem tem a sorte de nunca ter tido a necessidade de trabalhar por conta de outrem, "reestruturar" significa voltar a fazer tudo como se fazia há uns anos e cometer novamente os mesmos erros, para daqui a uns anos voltarmos ao estado em que estamos neste momento. É a maneira mais fácil de se conseguir mostrar uma qualquer evolução, daí ser um verbo tão utilizado em Política.

Para perceberem como os baixos funcionários de uma empresa se sentem durante uma reestruturação, permitam-me uma pequena metáfora: imaginem uma loja de loiças de casa de banho. Um dia, o dono acorda com a certeza que dá para espremer mais qualquer coisinha da loja. Convencido de que o problema está no gerente, põe-no a andar e arranja um novo, que tinha tido sucesso numa loja de electrodomésticos. Quando esse novo gerente entra ao serviço, realiza que não percebe nada daquilo, e é só uma questão de tempo até que um dia, confuso com tanta loiça à sua volta, se chegue ao pé de uma das sanitas em exposição e faça uma bruta cag... Não, esperem: se calhar, esta metáfora não é a mais adequada. Peço desculpa. Imaginem antes, que se passa a mesma coisa, mas numa pastelaria. Um dia, o novo gerente, confuso com tanto bolo à sua volta, chega-se ao tabuleiro que um empregado vai pôr na vitrina, e faz uma bruta cagada em cima de um palmier recheado – que, nesse momento, passa a palmier coberto. Perceberam? Pronto, é mais isto.

A acompanhar as reestruturações, estão sempre novos gestores de recursos humanos, isto é, tipos, ou tipas, licenciados em Psicologia que, como não tinham lugar na Psicologia Clínica, foram espertos e tiraram um mestrado qualquer relacionado com Sociologia ou Gestão, onde é ensinada a arte de receber um bom salário por andar a fingir que se faz um trabalho muito importante. Durante as reestruturações, estes burlões são obrigados a mostrar esse trabalho, e ocupam-se durante umas semanas a ensinar "novas técnicas", a instaurar "novas filosofias" e a motivar os "colaboradores" da empresa, que, por estas alturas, fazem sempre parte de "uma grande equipa". Penso que seria mais motivador mandar essa gente cavar batatas e dividir os seus ordenados pelos dos elementos da "grande equipa", mas quem sou eu , um reles licenciado em Cinema, para opinar?

A verdadeira razão desta publicação prende-se com o facto de, pelos vistos, fazer parte desse processo a exposição de cartazes, com frases, lá está, motivacionais, daquelas que as pessoas a partir dos 45 anos, ou marcas que entregaram o marketing ao sobrinho de um dos administradores, adoram partilhar quando decidem criar uma conta no Facebook. No meu local de trabalho, existem agora três desses cartazes, que irei, de seguida, reproduzir e analisar.



Um nota prévia: os cartazes que compus são diferentes dos da empresa onde trabalho, que são esteticamente preguiçosos, perdão, minimalistas – apenas as frases a branco, sobre fundo azul – e, por isso, demasiado desinteressantes para ilustrar esta resenha.

Posto isto, quem é este senhor com ar de mentor neonazi? Ken Blanchard – Kenny B., para os amigos – é uma espécie de guru da gestão de recursos humanos; um expert da motivação laboral; um supervigarista, digamos. Licenciado em Filosofia Política, mestre em Sociologia, e doutor em Educação Administrativa e Liderança, seja lá isso o que for, é autor de mais de 60 livros, traduzidos para mais de 30 línguas, que combinados venderam mais de 21 milhões de cópias. Foi ainda um dos responsáveis pelo desenvolvimento do modelo de Liderança Situacional, um manual de banalidades cheio de paneleirices muito úteis para quem anda a enganar. Dizer que "ninguém é mais capaz do que todos nós em conjunto" não significa nada, a não ser, talvez, numa situação em que se tenha que empurrar um autocarro, ou algo do género.



Michael Jordan, considerado por muitos o melhor jogador de sempre da NBA – existem outros tantos que, com pejo de glorificarem um preto, dizem que não, que o melhor era o Larry Bird –, até pode perceber muito de basquetebol, mas e o boxe? E o caraté? E os dardos, Michael? O póquer? O sumo? E o ténis, pá? Para que serve o trabalho de equipa no xadrex, Michael? Está mas é calado, se faz favor.

Aliás, este menino que ganhou a vida a jogar à bola com as mãos, continua a ganhá-la ao dar o nome a uma linha de calçado, provavelmente manufacturada por escravos chineses, enquanto passa a sua "reforma" a jogar golfe – um desporto símbolo do capitalismo e do individualismo, que consiste em gajos ricos a divertem-se a ganhar o dinheiro uns dos outros, enquanto outros gajos ricos assistem. Mas quem é que ele quer enganar?

Mas isto não é o pior: o que Michael Jordan – que se tivesse vivido há três ou quatro séculos, seria hoje conhecido por Miguel Jordão – realmente disse foi: «Talent wins games, but teamwork and intelligence wins championships.» Ou seja, os sociólogos e psicólogos gestores de recursos humanos de língua portuguesa, que adoptaram esta frase para motivar os trabalhadores, deixaram cair a parte da inteligência. Faz sentido. A existência de pessoas inteligentes em grupos que se querem controlados pode trazer chatices a essa gente. 



Finalmente, a cereja no topo do bolo; a pièce de résistance desta colecção. Das três frases escolhidas para nos motivar, uma é dum charlatão que vive de rendimentos, outra é de um jogador de basquetebol que vive de rendimentos e a última é uma frase feita que fizeram questão de atribuir a um anónimo. Ainda por cima burro. Se tivesse registado a frase, hoje vivia dos direitos de autor. Um gajo que não fez a diferença, portanto.

Ainda assim, há que dar o braço a torcer: pode não se saber quem lançou este repto pela primeira vez, mas das três frases é sem dúvida a que apresenta o maior desafio. Fazer a diferença todos os dias num trabalho que é sempre a mesma coisa é uma proeza votada apenas a heróis. Assim de repente, não me lembro de nada que pudesse fazer de diferente no meu trabalho. Só se um dia lá chegasse, me pusesse em cima da minha secretária e fizesse, ali mesmo, uma bruta cagada...




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