(Título armado ao pingarelho, sobre como é bom ler, e mais não sei o quê...)

(Título armado ao pingarelho, sobre como é bom ler, e mais não sei o quê...)

Antes de mais, confesso-me: não fui, até há pouco tempo, um leitor saudável. Era apenas um inculto, que só ouvia música, via filmes e, ocasionalmente, visitava museus e exposições. Hoje já leio mais. Só me falta ir ao teatro para ser uma pessoa de bem.

Agora a sério, fazem-me espécie as pessoas que, soberba e compulsivamente, fazem do seu ritual de leitura um maná de altivez, um golden shower de elevação, uma masturbação de arrogância, ejaculando o seu orgulho parolo para cima dos que os rodeiam. Para já, ejacular literal ou metaforicamente, para cima das outras pessoas, sem o seu consentimento, é sempre de um tremendo mau gosto; e depois, isto não é gente que gosta realmente de ler.

Ontem, por exemplo, enquanto tomava uma sensaborona bica num dos estabelecimentos da padaria que se diz portuguesa, ouvi um senhor de meia idade dizer a uma senhora de meia idade que, quando escolhia um estabelecimento hoteleiro, o fazia a pensar no conforto. Até aqui, nada de anormal, tirando o facto de o senhor ter dito mesmo "estabelecimento hoteleiro" – ninguém diz "estabelecimento hoteleiro", a não ser os gerentes e empregados dos estabelecimentos hoteleiros. Mas o que me fez urticária foi a razão para o conforto: dizia ele, "é que sabe, eu não leio numa posição qualquer". O menino não lê numa posição qualquer. Ai, não façam o menino ler desconfortavelmente.

Voltando ao primeiro parágrafo, só há coisa de um ano é que comecei a construir um ligeiro, mas satisfatório, hábito de leitura. Antes não lia por preguiça de arranjar livros para ler. Sacar música com fartura e uns Antonionis e Tarkovskys aqui o je até sacava, mas livros não se lêem em PDF – e a biblioteca ainda ficava a uma meia hora de distância, pá. Mas adiante, relativamente ao conforto durante a leitura, sou obrigado a revelar outro hábito, que no fundo faz parte do outro e que, de certo, partilho com outros indivíduos, principalmente do sexo masculino: eu leio, sobretudo, a cagar.

É verdade. Já li Sófocles sentado no trono, com todas as implicâncias de se estar sentado no torno. Ah, e de que conforto eu desfruto em me sentir mais leve a ler algo de que gosto. A maior parte das pessoas conta o tempo despendido a ler em horas ou dias, eu é em idas à casa de banho. Da minha boca poderão sair frases do género "mais uma cagada e acabo este capítulo", ou "vou guardar este calhamaço para a altura do Natal". Se alinho numa feijoada, por exemplo, avanço imenso na história. Além disso, agora quando a vontade aperta, anuncio a todos que vou ler, o que, não deixando de ser verdade, é também mais elegante do que dizer que vou mandar um fax.

Mas, atenção, não leio exclusivamente quando necessito de obrar. Também leio no comboio, todo torto, no sofá, todo torto, na cama, todo torto, enfim, em qualquer que seja o sítio, e em qualquer que seja a posição, desde que o livro me dê vontade. Ler um livro, para mim, não é obrigação, nem estatuto, nem uma forma de me convencer que não sou um bronco que devora livros atrás de livros, geralmente livros de merda, light a atirar para o sério, que quando começo um livro já não me lembro do que li antes, e que não sou diferente das pessoas que vão ao cinema ver todos os blockbusters ocos que estreiam, pessoas essas que eu tanto abomino com um escárnio bacoco, de quem se acha superior só porque tem a capacidade de diferenciar visualmente cada letra impressa, percebendo e relacionando este símbolo gráfico com seu correspondente sonoro, descodificar palavras e símbolos, e, no final, não ter nada para dizer acerca do livro a não ser "ah, eu estou a achar muito interessante, tens que ler; eu já li os livros todos deste autor e são todos bons, mas este eu estou mesmo a adorar" ou algo como "oh, sabes como é, é um Saramago; um Saramago é sempre bom".

Não, minha besta, um Saramago não será sempre bom, nem o será para toda a gente. Ler um livro não é pegares nele e colocá-lo à altura do teu focinho, para que as pessoas à volta vejam que lês. Ler um livro não é só ler o livro. Por isso, minha cavalgadura, perde esse respeito pacóvio por essa leitura cerimoniosa, pega num livro que te diga algo e vai cagar.




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